O processo de favelização e a 'gourmetização' das favelas: caso Ilha das Caieiras

03/07/2018

Daniele Ramos Martins dos Santos e Juliana Calado do Sacramento Santos 


RESUMO

Este artigo busca levantar dados acerca dos processos de "favelização" e de "gourmetização" das favelas e discutir sobre questões de níveis histórico, culturais e sociais que levam à tais comportamentos. Em um primeiro momento, fazendo um panorama geral quanto à favelização no âmbito nacional, apontando os primeiros e principais casos e, em um segundo momento, abordando um caso no contexto capixaba (Ilha das Caieiras) e aprofundado na problemática do processo de "gourmetização", tentando explicar como este afeta às pessoas.

INTRODUÇÃO

Pensando em territórios informais dentro das metrópoles, a favela é um espaço no contexto urbano que agrega diversos condicionantes e geram reflexos nas estruturas físicas, sociais e culturais que farão parte da edificação histórica dos seus desdobramentos internos e externos.

O cerne deste braço da "questão social" (CRUZ, 2015) está historicamente pontuado no descaso do Estado e na falta de planejamentos, sejam estes no campo social, urbano-arquitetônico, estendendo-se até o econômico. Dentro desses fatores, a relação do favelado com sua moradia, com seu lugar é a reprodução desenfreada do déficit estrutural tão reproduzido e pensado ao se questionar "o que é favela?". Barracos de madeirite com chão de terra batido e tábuas corridas ou casebres em tijolo aparente compõe o visual da autoconstrução das favelas juntamente com becos, vielas e terreiros, montando o "urbanismo subalterno" (ROY, 2017) proposto aos habitantes das comunidades nas metrópoles do Brasil: pobres, de maioria negra e trabalhadora da base da cadeia hierárquica do mercado.

Buscando sobrevivência dentro da óptica do capital e das benesses que o acesso aos bens de consumo proporcionados com o passar dos tempos, a população favelada avista uma nova possibilidade de lucrar com sua cultura e com novas realidades que as remetes. Esta, também, corrobora para o processo de espetacularização ("gourmetização") da cultura favelada e das particularidades que seus habitantes reproduzem dentro deste território.

O caso em estudo com foco no bairro Ilha das Caieiras, em Vitória - ES, encara este processo de apropriação cultural para no âmbito das expressões culturais relacionadas à culinária e no protagonismo da administração de empreendimentos voltados ao turismo instalados na área.

É correto dizer que o aluguel de pontos comerciais no cais construído pela municipalidade e de propriedade de algumas famílias tradicionais da região ajuda a melhorar a realidade econômica destas famílias, mas também é possível apontar tal fato como um dos fatos que acarretam na ineficácia do poder público em criar incentivos que melhorem a realidade das famílias da Ilha das Caieiras como um todo. Uma vez que, quando a comunidade não é protagonista no seu próprio local de habitação, ela perde o controle da área: não gera emprego e, consequentemente, não gera renda e afeta a autenticidade da identidade local.

O PROCESSO HISTÓRICO DA FAVELIZAÇÃO

Ao longo de séculos de planejamento e conformação do solo brasileiro, as cidades foram tomando corpo e a fluidez de suas vias é fruto de um processo. Cada parte das cidades, por sua vez, possui uma característica ímpar que, dentro dos estudos de suas culturas e populações, se define e, também, propõe uma delimitação invisível - ou limites culturais ao setorizar as cidades - entre as partes vizinhas. Para se entender o processo de favelização, contudo, precisa-se entender que, além do aspecto visual, este limite invisível se transforma em barreira física com as fachadas faveladas e toda a tradução histórico-estrutural que a favela carrega com o decorrer das décadas.

Datada de 1897, segundo o historiador Milton Teixeira (O Globo, 2017), a primeira estrutura de morro acontece no centro da atual capital do Brasil, a cidade do Rio de Janeiro. Um ano antes, em 1896, no interior da Bahia, acontecia a Guerra de Canudos (1896 -1897), conflito armado entre o Exército - braço do Estado aliado aos latifundiários - e trabalhadores rurais que pleiteavam por subsistência e pelo direito à terra com o objetivo de repartir as terras improdutivas do sertão baiano e eram orientados por Antônio Conselheiro. Como em todas as esferas hierárquicas da história do Brasil, quiçá da humanidade, o conflito de Canudos tinha em linha de frente soldados pobres e, no caso brasileiro, majoritariamente negros que receberam a promessa do Comando Geral da Guanabara que, ao voltar da guerra, teriam residências em forma de pagamento. Terminada e vencida a guerra, os soldados voltaram ao Rio de Janeiro e não foram pagos ou indenizados. Muitos desses soldados não possuíam famílias ou terras que pudessem, na época como se habituava, sobreviver do uso do solo. Sem amparo econômico do Exército, os soldados começam a ocupar o morro mais próximo do Comando Geral da Guanabara, localizado entre a atual Central do Brasil e a Gamboa, onde possuía terras sem donos. Estes homens constituíram famílias e assim iniciaram o processo de ocupação de morros.

O termo "favela" é originário da vegetação rasteira do Arraial de Belo Monte, antigo Arraial de Canudos rebatizado por Antônio Conselheiro durante o conflito, e os moradores do morro o chamavam de Morro da Favela por ter uma vegetação de cobertura semelhante no local. Somente cerca de trinta anos depois, na década de 1920, que o termo foi utilizado para englobar a categoria de "comunidade carente".

Além dos soldados, a primeira favela brasileira, atual Morro da Providência, e outras tantas disseminadas nas grandes cidades foram ocupadas por populações marginalizadas no final do século XIX como o ex escravos alforriados em 1888, a partir da assinatura da Lei Áurea, que apenas "libertavam" os escravos negros, sem preverem políticas de inclusão ou de compartilhamento das terras para que pudessem fazer verdadeiramente parte da população livre e trabalhadora, proporcionando formas de subsistência. Sem moradia ou emprego, a população alforriada negra buscou essas terras em morro próximas ao centro urbano do Rio de Janeiro, iniciando pequenos assentamentos e edificando os chamados "bairros africanos". Outra população que participou da edificação das primeiras favelas foram os trabalhadores que buscaram novas perspectivas de vida no processo de Êxodo Rural nas duas primeiras décadas do século XX. Este deslocamento de inúmeros trabalhadores do interior, do campo para grandes metrópoles é resultado da Primeira Revolução Industrial no Brasil a qual mecanizava o trabalho no campo, reduzindo significativamente a oferta de empregos e de mão de obra humana no mercado latifundiário. Ao chegar nestas metrópoles, a população em êxodo possuiu dificuldades ao se deparar com a vida urbana. Sabe-se que tais dificuldades estão interligadas à própria desigualdade social, alargando ainda mais esta tarja de diferença, e fez com que os povos migrantes buscassem às favelas como local de moradia e ocupação.

Outro ponto que constitui a realidade brasileira no processo de favelização também ligado à expressão da "questão social" (CRUZ, 2015), traduzindo-a como desigualdade social, é a crescimento desordenado da população conhecido como o fenômeno de macrocefalia urbana. A incapacidade que as cidades têm de absorver de forma igual e equilibrada seus habitantes é visível na conformação do traçado das favelas, das subjetividades que ela reproduz e transpassa com o passar das décadas. O crescimento não planejado e previsto das cidades não acontece apenas nas favelas em morros ou subúrbios - uma vez que, historicamente buscando referências, a população pobre se aloja distante dos grandes centros por, também, não conseguir se manter financeiramente nestes -, mas acontece em cidades planejadas como é o caso de Brasília e suas cidades satélites ao redor, onde não foram previstas habitações para os trabalhadores que a edificaram, muito menos pensaram que assim como os líderes governamentais e outros tanto moradores da nova cidades, os trabalhadores (conhecidos como candangos) também possuíam famílias e direito a habitação de qualidade.

Depois da construção de Brasília, no período da Ditadura Militar no Brasil, a favela e o subúrbio (ou periferia) tornam-se locais esquecidos, sem investimentos até mesmo em infraestrutura viária que era a bandeira levantada pelo regime, mas devido ao crescimento econômico das metrópoles, inicia-se outra demanda de êxodo rural em busca de novas realidades. Contudo, essa disparidade social era uma forma de segregar ainda mais as partes - ricos e pobres - e promover largamente a marginalização dos povos favelados.

O desenvolvimento das primeiras favelas no Brasil é o retrato do contínuo descaso estatal presente desde os anos do "descobrimento" - em aspas para enfatizar que fora um processo de ocupação do solo forçada e invasiva - que reflete a disparidade de quem pensa as cidades e de quem as usa atrelada até mesmo às expressões socioeconômicas-políticas. Pensar na esfera causal do processo de favelização no Brasil é pôr em debate questões nitidamente corriqueiras, mas que são sub priorizadas. E é nesse contexto de cidade que se fixa o papel do arquiteto urbanista dentro das políticas públicas no combate ao direito à cidade de modo homogêneo e acessível a todos os cidadãos.

ESFERA CAUSAL: ASPECTOS SOCIOECONÔMICO-CULTURAIS E O REFLEXO URBANO-ARQUITETÔNICO

Cuidadosamente pontuando e puxando assuntos tratados anteriormente, as causas do processo de favelização estão ligadas diretamente a desigualdade social e seus desdobramentos socioeconômicos como o racismo, estagnação econômica, preconceito de classe, direito à moradia, macrocefalia urbana, má gestão das cidades, etc. A partir desses desdobramentos, pode-se constatar a relação habitante e cidade é mais estreita do que se espera.

Dentro dessa tal esfera, a favelização vai desde os barracos de madeira com chão de terra batido do século XIX no Centro do Rio de Janeiro até as construções informais de sete (07) pavimentos com pilares de 15x10 cm no bairro Jesus de Nazareth, em Vitória, nos dias atuais.

A necessidade de habitar proporcionou grandes surpresas e desafios urbano-arquitetônicos. A escassez de recursos materiais e de técnicas de construção fizeram da tipologia de edificações das favelas única, mas, concomitantemente, plural na qual se encaixam diversos tipos de residências abrigando habitantes conforme a necessidade de espaço, recorrendo-se demasiadamente à autoconstrução irregular. Essa última margeia ao caos que é organizar sistemas de instalações técnicas um espaço irregular, dificultando o abastecimento de famílias inteiras e facilitando o desvio desses bens ligados às instalações como água, luz, telefone, entre outros.

Esta ocupação irregular e desajustada dos desenhos, juntamente com o adensamento populacional característico desses espaços, faz com que a malha viária das favelas seja caracterizada por becos, vielas e, para melhor união das vias, mirantes que possibilitam surpresas irresistíveis de dentro para fora das favelas e tornam-se marcos ou visadas. Estes marcos, com o passar do tempo sendo utilizado pelos transeuntes, tornam-se pontos turísticos como os mirantes do Salgueiro e o encontro de becos no Complexo do Cantagalo Pavão Pavãozinho, no Rio de Janeiro, por exemplo.

E nesse contexto de turismo e belas paisagens, a favela começa a entrar em destaque e atrativo cultural; não apenas pelo contraste entre natureza e edificação, mas pela cultura da mesma como o modo de se vestir dos habitantes, a música que produzem como o funk e o rap, os hábitos cotidianos, entre outros. Exemplo disso são as telenovelas brasileiras que reproduzem uma favela romantizada, passando ao telespectador apenas um espectro simples e estético da vida em uma "comunidade carente". Esta reprodução também corrobora a outras tantas reproduções de favelas que são percebidas como bailes funk elitizados e que satirizam e/ou segregam os habitantes dessa realidade. Com a popularização das favelas como a do Vidigal, produtores investem em bailes no alto do morro com um esquema de segurança altamente preparado para represália dos moradores da favela, camarotes com ingressos caros e inacessíveis aos favelados, bebidas caras e atrações de alto cachê.

Este processo de espetacularização da favela é decorrente não apenas do processo de globalização das culturas, mas também da sociedade da modernidade líquida e pós-moderna (Bauman, 2001) que se torna permissiva e não filtra os costumes dos povos opostos apenas como algo diferente, mas necessitam integrarem às suas culturas, apropriando-se de forma vazia e enganosa.

GOURMETIZAÇÃO E SEUS CONDICIONANTES

O processo de espetacularização, ou melhor dizendo, gourmetização (Lourenço, 2016) da cultura de favela agrava-se nos anos 2000 com o boom do funk carioca e mais tarde, em 2010, com o estilo funk ostentação com raiz paulista que supervaloriza a vida do crime de forma oculta, mostrando apenas os bens resultantes dessa vida. Por Lourenço, o processo de gourmetização inicia-se com os programas de culinária em TV, estendendo-se à gastronomia e sua propaganda. Hoje, o termo se banalizou para caracterizar determinado objeto que é supervalorizado e adquire valores altos de consumo. Obviamente, a inserção de pessoas não-faveladas nas atividades das favelas é algo que sempre ocorrera de forma natural, contudo controlada como nos acessos barracões de escolas de samba, no consumo de entorpecentes corroborando para o narcotráfico de algumas dessas favelas entre outras situações. Mas o que acontece desses anos até os dias de hoje é a inserção e apropriação cultural que os não-favelados exercem, vendendo, comercializando e banalizando essa cultura que demorou décadas para serem minimamente reconhecidas como uma cultura decente e valorizável.

Com o processo de supervalorização rápida de uma determinada área, ocorre o aumento de preços, a especificação de comércios e serviços e, com isso, por vezes a comunidade ali inserida não consegue acompanhar o ritmo e acaba tendo que deixar a área por não conseguir se manter nela. Processos de revitalização, incentivos a atividades de turismo e a apropriação de atividades culturais locais por parte de terceiros que ali não habitam ou utilizam, acabam por deslegitimar as expressões humanas tradicionais e encarecer o produto final.

Além disso, as favelas, constituindo um marco na paisagem urbana geralmente atreladas à cenários naturais e um estilo de autoconstrução espontâneo, começam a ter suas tipologias confrontadas com construções descontextualizadas; arquiteturas que se inserem sem a preocupação com o meio, a comunidade em que se implanta.

ESTUDO DE CASO: ILHA DAS CAIEIRAS

Se o crescimento espontâneo das comunidades terminou por consolidar marcos na paisagem urbana, com o surgimento de favelas, a princípio no Rio de Janeiro, não tardou muito para esse fenômeno alcançar ouras localidades, inclusive o Espírito Santo. A organização espacial que é espelho da condição econômica e de experiências de autoconstrução dos moradores, se impõe e carece de investimentos públicos a fim de garantir a habitabilidade. E se de um lado os investimentos públicos geram oportunidades para os locais, estes também atraem os olhares atenciosos dos "gringos" (termo aqui utilizado para definir quaisquer pessoas que não habitam ou participam, de alguma forma, da comunidade) e acaba por gerar um processo que, muitas vezes, resulta na migração dos locais para outras localidades.

A Ilha das Caieiras é tão antiga quanto o município onde se encontra e possui registros em documentos desde o Espírito Santo provincial. Ali, a noroeste da ilha de Vitória, viviam famílias que tiravam seu sustento de atividades ligadas ao manguezal: catação de moluscos e mariscos, pesca e a produção de cal a partir das conchas. Foi em 1977 que 40 famílias se assentaram na região e deram surgimento ao que hoje é conhecido como bairro de São Pedro, eles levantaram suas lonas e barracos improvisados na área próxima ao manguezal, primeira área a ser ocupada, e começaram processo de ocupação que caracteriza o bairro até os dias de hoje, sendo mais adensado na parte baixa, com suas casas de palafitas e passarelas que se suspendiam sobre o mangue e, na parte alta, ocupação mais esparsa. Nesse primeiro momento, a região era servida pela Avenida Serafim Derenzi, na época chamada "Estrada do Contorno", ainda sem pavimentação, e não possuía benfeitorias de água, energia elétrica, telefone ou quaisquer outras.

Um fato importante a ser mencionado na história de São Pedro e, consequentemente, também da Ilha das Caieiras, é que nesta mesma década, o governo municipal instituiu a área como destino final do lixo urbano residencial, comercial, hospitalar e industrial que tiveram como consequência o aterro e loteamento da área e na poluição significativa da baía, que acarretou em deterioração dos aspectos naturais do local, influenciando negativamente nas atividades econômicas tão características da região. A desativação do canteiro de obras da Companhia Siderúrgica Tubarão (CST), localizado próximo da região estudada, acarretou em desemprego e coincidiu justamente com a época em que se começara a traçar loteamentos formais na área que hoje é conhecida como Grande São Pedro; ela, então, se tornou uma opção atrativa para famílias de baixa renda, o que levou à rápida expansão da área.

O aterro da área foi a primeira mudança significativa que ajudou a moldar o traçado da região: não muito tempo depois, começaram a ser determinadas ruas (elas, com nomes que rememorassem a luta dos moradores pelo direito à habitação) e as benfeitorias: uma torneira pública substituía os poços artesanais de água salgada (muito embora até hoje, segundo o Coordenador do Museu dos Pescadores, os moradores ainda contem com seus poços para auxiliar nas atividades domésticas que necessitem de água, pois a falta de abastecimento é recorrente na Ilha das Caieiras). Alguns anos depois, a pavimentação pública, iluminação e sistema de abastecimento de água chega às moradias, que aos poucos deixam de ser casebres de madeira e se erguem como espontâneos resultados de autoconstrução em alvenaria.

Com os bairros consolidados, a partir da década de 1990 novos problemas surgiram no cotidiano da região: a carência de equipamentos de lazer, de espaços trabalhados com paisagismo e uma rede de serviços que supram necessidades que até então levassem os moradores a se deslocarem até o centro da cidade.

"A região deixou de ser apenas fornecedora de mão-de-obra sem qualificação para o restante da capital. Está abandonando a característica de bairro-dormitório e incorporando em seu perfil, a produção." (PREFEITURA DE VITÓRIA, 2015, p. 115).

Pensando assim, a municipalidade encube-se na tarefa de fomentar produções (culturais e de lazer, principalmente) que permitissem à região uma certa autonomia no âmbito de gerar renda e possibilitar melhor qualidade de vida. Nos anos 2000, então, o Bairro recebe investimentos da municipalidade a fim de fomentar atividades econômicas relacionadas ao turismo na região e preservar a paisagem natural.

Em 2009, o governo municipal anunciou um projeto que incentiva o ecoturismo, aproximando moradores, visitantes e o contexto, tal medida, buscando amenizar impactos ambientais na área, incentivando o cuidado com o meio ambiente e, também, gerando uma fonte de renda alternativa para moradores do local com passeios ecológicos no percurso da baía.

Em 2013, ocorre a construção de duas praças (uma, com museu e posto de informações e, outra, com quadra de esportes, academia popular e outros mobiliários atrativos) e a reforma do cais: este recebe um deck de madeira e aproxima a relação entre o usuário do bairro e a visual do manguezal.

Atualmente, segundo dados da Prefeitura de Vitória, a Ilha das Caieiras é inexpressiva quanto às atividades de pesca e se destaca no setor de serviços, apresentando potencial como polo gastronômico de Vitória. Tal atividade movimenta o turismo na ilha de Vitória como um todo e, por isso, é de grande interesse a nível de município. Mesmo com a ascensão para o statusde ponto turístico popular em todo o estado, pouca coisa mudou na realidade da comunidade da Ilha das Caieiras, em termos gerais. Se antes seus moradores eram compostos por pescadores e trabalhadores de uma indústria de cal e, então, recém-desempregados do canteiro de obras da CST, hoje, a população do bairro possui média salarial mensal entre 1 e 2 salários mínimos (segundo dados da Prefeitura de Vitória). Tal informação revela a ineficiência dos incentivos públicos para mudar efetivamente a realidade das famílias que habitam o local.

Além disso, falta de planejamento urbano dos bairros da Grande São Pedro dificulta o acesso à Ilha das Caieiras. Sendo, como dito anteriormente, um ponto de interesse a nível estadual, é muito procurado por pessoas que não conhecem bem a região, mas é preciso adentrar um emaranhado de ruas com características "bairristas" (densas, delgadas e, por vezes, não servidas de calçadas). É fácil se perder na "Ilha", principalmente para os que dependem de transporte público. Além disso, como a "Ilha" já se apresenta bem-dotada de comércios e serviços, principalmente ao longo da Serafim Derenzi, relativamente próxima à área de estudo em questão, os problemas enfrentados são outros: a crescente falta de segurança e a situação de "abandono".

É possível apontar alguns incentivos públicos como catalisadores de um processo de substituição da autenticidade dos serviços prestados na ilha, uma vez que a área se torna de potencial interesse não só de usuários, como de investidores e, assim, os restaurantes tão populares deixam de pertencer a famílias da Ilha das Caieiras e passam a ser pontos alugados para terceiros vindos de outras regiões, encarecendo os serviços, e, como fora anteriormente mencionado, afastando os moradores da produção gastronômica da região; inicia-se um processo de gentrificação, onde a população não consegue acompanhar o ritmo acelerado de valorização da área causada pelos incentivos e, aos poucos, vai sendo expulsa. A população entende esse comportamento:

"Mas quem conquistou seu pedaço de chão a qualquer custo para instalar-se, por menor que seja o chão e mais simples a moradia, vê com resistência a proposta de reordenamento, mesmo que seja para alterar suas precárias condições de vida." (PREFEITURA DE VITÓRIA, 2015, p. 118).

Em conversa com Aguinaldo, morador do bairro Ilha das Caieiras e proprietário de restaurante na orla, ele expressa a dificuldade em manter seu serviço após a chegadas dos "gringos", como ele opta por chamar. É fato de que seu restaurante ficou para trás, não só em relação ao cais e à Avenida Beira Mar, que ladeia o manguezal, mas em questão da preferência da maioria dos consumidores. Ele, ainda, diz que a postura adotada na abordagem dos clientes por parte dos "gringos" assusta e afasta os consumidores da região.

É correto afirmar que o deck de madeira é um atrativo aos olhos dos usuários do bairro: ele aproxima a relação entre turista e manguezal. É possível, a partir dali, assistir às atividades relacionadas a pesca acontecendo na costa.

Quanto às outras obras públicas mencionadas, a praça ao fim da Avenida Beira Mar é mais amplamente utilizada pelos moradores da região, pois está localizada em proximidade com a área predominantemente residencial, sem comércios e serviços voltados diretamente ao turismo. E uma vez questionado sobre a frequentação dos restaurantes por locais, Aguinaldo responde que "não há a necessidade de ir a um restaurante porque a culinária é ensinamento passado de pai para filho e, uma vez que se pode comprar o peixe muito barato aqui no atracadouro, é muito mais barato comer em casa". Ele ainda revela que, em linhas gerais, o indivíduo local não está afastado somente da administração do ponto comercial, quanto da produção da gastronomia, que acaba não sendo a "tradicional", como é amplamente anunciada. É notável a gourmetização que está sendo instaurada nos restaurantes: quem vai à Ilha das Caieiras, geralmente, não consome dos produtos da "Ilha", mas de uma imagem esteticamente aprazível e encarecida que imita os produtos dela.

LEGITIMAR O ESPAÇO FAVELADO

A partir da análise histórico-dialética do processo de favelização e as condições de apropriação cultural decorrentes da espetacularização ou gourmetização, pôde-se notar que a favela se tornou alvo de uma máscara que estampa uma realidade lúdica do habitar na favela, uma cultura extraída para ser puramente com o objetivo de ser comercializada e banalizada. Nas mesmas condições da culinária do mar da Ilha das Caieiras a qual transpassa por esse processo, o acarajé e as baianas também sobrevivem nessa esfera de espetacularização nas ruas de Salvador, na Bahia, e em tantas outras cidades espalhadas pelo Brasil, por exemplo. Por essa comparação, pode-se prever que com o decorrer das décadas o que acontece nas Caieiras possa se perder e se banalizar.

Cultura, no sentido de hábito de um povo, é a essência da história da construção das cidades, das suas edificações, das suas ruas e de outras culturas que se desdobram, por conseguinte. Extrair uma determinada cultura do seu lugar é matar, aos poucos, histórias, costumes, riquezas e, sobretudo, pessoas. Logo, a síntese presente é definir que o processo de gourmetização da cultura dentro do recorte das favelas é perigosa, colocando em risco todo um passado, um presente e um possível futuro de uma gente, no caso, dos habitantes e reprodutores da culinária e da atividade pesqueira na Ilha das Caieiras.

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